Introdução
A responsabilidade civil médica é um tema central no Direito Civil moderno, especialmente no contexto de procedimentos cirúrgicos complexos, onde múltiplos agentes — cirurgiões, anestesistas, instrumentadores, equipe de enfermagem — atuam em conjunto. O REsp 2.034.495/MG, julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatado pela ministra Daniela Teixeira, marca importante avanço jurisprudencial. Ele reforça a necessidade de individualização da conduta culposa, afastando responsabilizações automáticas de cirurgião por erro exclusivo de anestesista.
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Contexto jurídico e requisitos da responsabilidade civil médica
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A responsabilidade civil médica no Brasil exige, como pressupostos mínimos: dano, nexo causal e culpa (negligência, imprudência, imperícia).
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Profissionais liberais respondem de forma subjetiva, ou seja: não basta que haja resultado adverso, deve haver prova de conduta culposa. Esse regime se distingue da responsabilidade objetiva, aplicável em certas situações, como a dos hospitais ou instituições de saúde, quando previsto legalmente ou em contrato de prestação de serviço.
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Autonomia técnica do anestesista e limites da imputação ao cirurgião-chefe
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No REsp 2.034.495/MG, o STJ reconheceu que o anestesista atua com autonomia técnica e científica, sem subordinação hierárquica ou funcional direta ao cirurgião, no que diz respeito às suas atribuições especializadas.
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Portanto, quando o dano decorrer exclusivamente de falha do anestesista, sem prova de que o cirurgião tenha contribuído ou que sua conduta culposa seja imputável, não cabe responsabilização solidária ou automática ao cirurgião. Esse entendimento alinha-se a precedentes como o REsp 605.435 e o REsp 1.790.014.
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Responsabilidade do hospital
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As instituições hospitalares frequentemente respondem objetivamente, seja com base no dever de garantir condições adequadas (estrutura, pessoal, supervisão), seja pela sua intermediação entre paciente e profissionais. No REsp citado, o hospital pode permanecer na ação quando há falha na prestação global do serviço.
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Efeitos práticos e segurança jurídica
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Para os profissionais médicos, essa jurisprudência traz clareza: não mais será presumida culpa compartilhada ou responsabilidade solidária simplesmente por chefia de equipe. É exigida prova concreta de culpa do cirurgião ou de sua participação no dano.
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Para pacientes, reforça-se a necessidade de perívida produção de prova (perícia médica, nexo causal, prova da culpa específica), o que pode tornar algumas demandas mais complexas, mas também mais justas no veredito.
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No âmbito processual, a delimitação do réu certo evita litígios infundados contra profissionais que não participaram do evento danoso, melhor alocação do ônus da prova e diminuição de recursos judiciais para reverter condenações indevidas.
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Argumentos adicionais em defesa da tese que afasta responsabilidade do cirurgião quando há erro exclusivo do anestesista
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Culpa in eligendo e in vigilando: Se demonstrado que o cirurgião levou um anestesista sabidamente inexperiente ou negligente, ou deixou de fiscalizar condições adequadas de trabalho ou aparelhos, então se poderia cogitar culpa in eligendo ou in vigilando. Mas isso não equivale a responsabilização automática em todos os casos.
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Distinção entre chefia e subordinação funcional: A chefia de equipe não implica subordinação técnica do anestesista. Chefia pode significar coordenação, responsabilidade estruturante, mas não se confunde com comando direto sobre decisões técnicas do anestesista.
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Preservação da autonomia profissional conforme princípios éticos e do exercício da medicina: O anestesista possui domínio sobre sua técnica, decisões médicas próprias, avaliações pré-anestésicas, controle de risco intraoperatório. Isso reforça o argumento de que a responsabilização indevida do cirurgião fere deveres éticos e jurídicos de competência profissional.
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Precedente consolidado e previsibilidade: Jurisprudência recente do STJ indica que o sistema está caminhando para maior previsibilidade, o que é fundamental para o planejamento da prática médica, seguro de responsabilidade civil e estabilidade institucional.
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Conclusão
O REsp 2.034.495/MG constitui, de fato, um marco relevante na evolução da responsabilidade civil médica no Brasil. Ele reforça critérios essenciais:
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a responsabilização civil deve recair sobre quem efetivamente praticou a conduta culposa, exigindo prova específica (culpa, dano, nexo causal);
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o anestesista, quando age em sua esfera técnica exclusiva, responde pessoalmente e subjetivamente pelos erros de sua competência;
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o cirurgião-chefe, salvo prova de participação ou culpa própria (inclusive por escolha ou supervisão inadequada), não deve responder solidariamente por erro exclusivo do anestesista;
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os hospitais mantêm responsabilidade objetiva ou solidária quando falhas estruturais ou de serviço global forem identificadas;
Esses elementos contribuem para um sistema de responsabilização mais justo, equilibrado e eficaz, que protege tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde. O julgamento eleva a segurança jurídica, delimita claramente obrigações e protege contra injustiças de imputações indevidas.
Referências principais
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“A responsabilidade civil do cirurgião em erro médico atribuído ao anestesista: comentários ao REsp 2.034.495/MG”, Vitor Eduardo Tavares de Oliveira, Migalhas, 5 de setembro de 2025. (Migalhas)
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STJ, REsp 1.790.014/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgamento em 11 de maio de 2021. (Superior Tribunal de Justiça)
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STJ, EREsp 605.435/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, j. 14 de setembro de 2011. (Migalhas)
Assinatura
Cassiano Oliveira
Jurista, especialista em Defesa Médica e Direito Médico
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