Frankenstein e Bioética: Autonomia, Consentimento e Justiça em Debate

Cena médica inspirada em Frankenstein com paciente vulnerável e equipe discutindo ética e consentimento

Ao entrar no cinema para assistir ao novo filme de Guillermo del Toro, fiquei impactado não apenas pela atmosfera sombria e pela estética densa, mas sobretudo pelo quanto Frankenstein permanece, século após século, um poderoso ponto de partida para entendermos debates cruciais da bioética contemporânea. Essa experiência se tornou ainda mais marcante quando assisti a Pobres Criaturas, com Emma Stone, cuja trajetória também desnuda temas centrais da autonomia, consentimento e justiça. Diante dessas obras, percebo como narrativas que parecem distantes dos consultórios e tribunais, na verdade, dialogam fortemente com os desafios diários enfrentados por profissionais de saúde, gestores e advogados como eu, que atuam no direito da saúde.

O verdadeiro Frankenstein: quem é o monstro?

É muito comum que o público confunda Frankenstein com a criatura. Mas, na verdade, Frankenstein é o médico criador, Victor Frankenstein, e não o ser criado por ele. Essa confusão não é mera casualidade. Ela reflete a inversão dos papéis entre criador e criatura, opressor e oprimido, ciência e moralidade.

Victor Frankenstein simboliza o cientista que, movido por paixão e ambição, ultrapassa limites sem considerar as consequências éticas. Ele desafia as normas ao experimentar a criação da vida, ignorando o dever de cuidado, responsabilidade e, sobretudo, o respeito à dignidade daquele que traz à existência. O momento em que Frankenstein abandona sua criatura escancara uma profunda quebra de responsabilidade, ecoando questões que ainda hoje são centrais no campo da bioética.

A ciência precisa de limites éticos claros, sem isso, ela cria mais vulnerabilidades do que soluções.

O abandono, o sofrimento e a ausência de humanidade: lições de Frankenstein

Na obra, a criatura é vítima não apenas de um experimento mal conduzido, mas de um abandono radical. Victor Frankenstein, seu “pai” e responsável, recusa-se a reconhecer sua responsabilidade diante do sofrimento causado.

No universo da saúde e da pesquisa, negligenciar o cuidado e a humanidade é negar o valor central dos direitos humanos. Isso se materializa diariamente em situações como pesquisas clínicas realizadas sem consentimento adequado, procedimentos médicos experimentais sem respaldo legal ou ético e abandono institucional de pacientes em situações de vulnerabilidade.

Essa ausência de cuidado aparece, inclusive, como uma ameaça à dignidade: ao ignorar o sofrimento da criatura, Victor Frankenstein se omite de zelar pela autonomia, integridade e o direito de ser ouvido de quem sofre diretamente as consequências do “avanço científico”.

Cena mostrando um cientista de costas abandonando seu experimento em um laboratório escuro

Pobres Criaturas, bioética feminista e a luta pela autonomia

Quando penso em Pobres Criaturas, o paralelo com Frankenstein me salta aos olhos: Bella Baxter é submetida a experiências que a privam de autonomia e autodeterminação, vivendo sob tutela masculina ao longo da vida.

Essa narrativa reforça debates urgentes trazidos pela bioética feminista, tais como:

  • Direito à autonomia reprodutiva
  • Enfrentamento da violência obstétrica
  • Reconhecimento das desigualdades de gênero no acesso à saúde
  • Controle social e institucional sobre o corpo feminino e a sexualidade

A bioética tradicional, fundada em princípios universais, é ponto de partida, mas não dá conta de todos os dilemas, especialmente no que tange a desigualdades estruturais, raciais e históricas. A vertente feminista, e cada vez mais a racial, amplia o debate, trazendo para o centro da discussão questões de historicidade, opressão, exclusão e invisibilidades socioestruturais, temas que tocam diretamente o cotidiano do direito médico.

O surgimento da bioética e sua interdisciplinaridade

Eu sempre reforço em meus cursos que a bioética é, antes de tudo, interdisciplinar. Ela está na interseção do Direito, medicina, filosofia, sociologia e biologia. Nasceu como resposta aos horrores dos experimentos do século XX, o que ficou claro em fatos como os experimentos nazistas, o estudo de Tuskegee com sífilis, as esterilizações forçadas e pesquisas sem consentimento livre, que marcaram tragicamente mulheres, negros, pobres e outros vulneráveis.

O surgimento da bioética foi um grito contra os abusos e a favor da dignidade humana. A intenção era e continua sendo garantir que o avanço da ciência nunca se sobreponha ao respeito à vida, à autonomia e à justiça social.

Princípios fundamentais da bioética

A bioética é orientada por quatro grandes princípios:

  • Autonomia, direito do paciente de decidir sobre si mesmo
  • Beneficência, atuação para o benefício do paciente
  • Não maleficência, evitar o dano, o “primum non nocere”
  • Justiça, garantir equidade no acesso aos recursos e tratamentos

Esses pilares, ampliados por críticas feministas e raciais, formam hoje o núcleo do debate nos conselhos, tribunais e hospitais.

Consentimento livre e esclarecido: base da dignidade

No contexto das pesquisas clínicas e da atuação médica, o consentimento livre e esclarecido é a forma mais tangível de garantir autonomia e respeito ao indivíduo. Participar de um experimento só é legítimo quando o indivíduo compreende riscos, benefícios e alternativas, e isso vale tanto para procedimentos médicos, quanto para pesquisas com seres humanos.

Dados de estudos apontam que mais de 90% dos voluntários relatam experiências positivas ao participar de ensaios clínicos, sobretudo pela oportunidade de aprender sobre a doença, contribuir para o avanço coletivo e contar com acompanhamento médico de qualidade. Ou seja, o respeito ao direito de saber e decidir é, de fato, fonte de dignidade.

Há, porém, violações graves: a utilização de cloroquina nebulizada em tratamentos experimentais sem aprovação ética, condenada pelo Conselho Nacional de Saúde, reafirma o risco dos atalhos em procedimentos experimentais.

A lei 14.874/24 entrou em vigor para deixar claro que danos causados a participantes de pesquisas não podem ser isentos de responsabilidade. Os patrocinadores e pesquisadores devem responder e indenizar eventuais prejuízos, privilegiando proteção, dignidade e justiça.

Participante de pesquisa clínica lendo e assinando termo de consentimento em sala com pesquisador

A transparência em pesquisas clínicas, promovida por ferramentas como o novo painel de business intelligence da Anvisa, contribui para permitir o acompanhamento da atuação dos centros e pesquisadores, promovendo informação e segurança para todos os envolvidos ao disponibilizar dados sobre investigações clínicas com dispositivos médicos.

Autonomia, vulnerabilidade e justiça no Brasil contemporâneo

A Constituição de 1988 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos tratam dignidade e saúde como direitos inalienáveis. Mas, enquanto converso com profissionais de saúde na minha prática cotidiana, percebo quantos desafios temos para concretizar esse ideal, em especial diante da escassez de recursos, judicialização, e dos marcadores históricos de exclusão.

Situações como a luta dos povos indígenas por direito a consulta e autodeterminação reiteram que o debate bioético não se esgota no consultório médico. Justiça em bioética significa lutar por equidade, acesso e respeito a direitos conquistados historicamente, do leito hospitalar ao território ancestral.

Frankenstein, ciência, exclusão e desigualdade: um alerta atual

Frankenstein, ao abandonar seu experimento, leva ao limite a sombra da exclusão. Quando a ciência abandona o senso crítico e o olhar ético, ela tende a reproduzir e ampliar desigualdades, perpetuando vulnerabilidades sociais. O sofrimento da criatura, precedido pelo desprezo de Victor Frankenstein, é projeção do que ocorre quando o avanço científico ignora os sujeitos e suas histórias.

Esse alerta é urgente no contexto brasileiro, onde frequentemente as populações mais vulneráveis são as maiores vítimas de falhas institucionais e de um entusiasmo tecnológico desenfreado, sem a devida vigilância legal e social.

Judicialização e escassez de recursos: desafios à luz da justiça

Em situações de recursos limitados, como decidir quem terá acesso a determinado tratamento? Como profissionais de saúde devem agir diante de prescrições judiciais que demandam intervenções de alto custo?

O princípio de justiça exige não apenas distribuir de forma equitativa, mas também pensar nas consequências coletivas das decisões. Temas ligados à autonomia do paciente, à recusa de tratamento, à responsabilidade civil por imprudência e à ética médica estão todos interligados nesse debate.

Inclusive, relatos de imprudência na saúde e a discussão sobre limites da recusa de tratamento mostram a intricada relação entre escolhas técnicas, autonomia do paciente, risco e equidade.

Bioética entre ficção e realidade: temas atuais em debate

Ao trazer Frankenstein e Pobres Criaturas para o centro do debate, abro espaço para refletirmos sobre como narrativas literárias e cinematográficas se conectam com questões extremamente atuais:

  • Início da vida, reprodução assistida e gestação por substituição
  • Fim da vida, cuidados paliativos, diretivas antecipadas, ortotanásia, eutanásia, distanásia
  • Aborto, direitos sexuais e autonomia reprodutiva
  • Clonagem e manipulação genética
  • Inteligência artificial, novas neurotecnologias e autonomia
  • Consentimento informado, recusa de tratamento e experimentação em humanos
  • Desigualdades estruturais e equidade na saúde

Essas questões estão profundamente enraizadas nos grandes dilemas bioéticos do nosso tempo e aparecem tanto nos expedientes do consultório quanto nas demandas judiciais vividas por médicos, pacientes e advogados.

Frankenstein e Pobres Criaturas: além do entretenimento

Em minha visão, não se trata apenas de entretenimento. Tanto o filme de del Toro quanto a narrativa de Bella Baxter funcionam como exercícios morais, que nos forçam a questionar como ciência, justiça e ética devem dialogar.

A ciência, sem ética, corre o risco de se tornar uma máquina de opressão.

Ao assistir a esses filmes e refletir sobre o que está diante dos nossos olhos, vejo o quanto é fundamental, para médicos, cirurgiões-dentistas, advogados e gestores da saúde, compreender as dimensões éticas, jurídicas e humanas nas escolhas cotidianas.

Conclusão: reflexão e responsabilidade para além da tela

Quando me perguntam se Frankenstein e Pobres Criaturas ainda fazem sentido diante dos desafios da saúde contemporânea, minha resposta é enfática: fazem, e muito.

Portanto, da próxima vez que você encontrar um caso, um paciente ou uma pesquisa que suscite dúvidas sobre limites, consentimento, autonomia ou justiça, lembre-se desses filmes. Utilize-os como ponto de partida para pensar criticamente.

O avanço científico não pode custar a dignidade humana. Ética, responsabilidade e justiça devem sempre guiar nosso caminho.

Se você busca apoio para navegar por dilemas éticos e legais na área da saúde, recomendo que conheça os serviços e soluções que ofereço em consultoria e gestão jurídica. Aqui, autonomia, proteção profissional e ética caminham juntos.

Perguntas frequentes sobre Frankenstein e bioética

O que é bioética na obra Frankenstein?

Na obra Frankenstein, a bioética se manifesta nos limites éticos e morais das ações de Victor Frankenstein, ao criar vida sem se preocupar com responsabilidade e consequências para sua criatura. O livro mostra o perigo da ciência desvinculada da preocupação com o sofrimento do outro, o que reforça debates sobre dignidade, autonomia e justiça.

Como Frankenstein aborda a questão do consentimento?

A falta de consentimento está no centro da crítica à conduta de Victor Frankenstein. A criatura nunca foi consultada, informada ou teve a opção de aceitar ou recusar sua condição. Esse descaso com o consentimento ecoa a importância desse princípio em pesquisas clínicas e na prática médica, onde o respeito à escolha do indivíduo é uma base ética fundamental.

Por que autonomia é importante na bioética?

A autonomia garante que cada indivíduo possa tomar decisões informadas sobre seu corpo e sua vida. Na bioética, respeitar a autonomia é evitar práticas paternalistas e garantir que pacientes e participantes de pesquisas possam decidir conscientemente diante de opções, riscos e consequências. Esse princípio protege direitos humanos e fortalece vínculos de confiança.

Quais são exemplos de injustiça em Frankenstein?

O maior exemplo de injustiça é o abandono da criatura após seu nascimento, negando-lhe cuidado, inclusão e respeito. Também há injustiça social, já que a criatura sofre preconceito, exclusão e violência simplesmente por ser diferente. Essas situações refletem como desigualdades e vulnerabilidade podem ser agravadas por escolhas científicas sem responsabilidade social.

A obra Frankenstein ainda é relevante hoje?

Sim, Frankenstein é extremamente relevante ainda hoje, já que levanta questões que estão presentes em dilemas atuais da bioética, como autonomia, consentimento, justiça, responsabilidade médica e experimentação em humanos. A narrativa ressoa em debates sobre início e fim da vida, novas tecnologias e desafios na relação entre ciência e direitos humanos.

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Cassiano Oliveira

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