Durante anos atuando na defesa de médicos, instituições e profissionais de saúde, fiquei marcado pelo caso Benício, ocorrido em Manaus. Esse episódio não foi apenas mais uma tragédia hospitalar, mas um alerta duríssimo: o modelo atual que mira punições individuais diante de erros sistemáticos está falido. Hoje, proponho um olhar diferente, inspirado na ideia criminalística da cadeia de custódia da prova. Aqui, falo de uma cadeia de custódia da vida como uma nova base jurídica e prática para a segurança do paciente no Brasil.
O episódio Benício: falhas que matam e o erro de focar no indivíduo
O que presenciei e estudei sobre o caso Benício ainda ecoa: uma criança, vítima da soma de erros em série, sem uma única mão “culpada”, mas sim um sistema encadeado de negligências. Comunicação truncada, falta de dupla checagem, derrocada da supervisão, protocolos ineficazes e improvisos diante de sistemas informatizados mal planejados compuseram o cenário catastrófico. Benício não faleceu por conta de um único erro, mas sim por uma sucessão de elos frágeis, da prescrição do remédio até a administração final.
Quando vários elos falham, o sistema é que mata, não a pessoa.
Essa é a raiz do novo paradigma: não adianta buscar um “culpado” se todo o processo foi comprometido.
Cadeia de custódia: lição do direito penal para o direito da saúde
No direito penal, a cadeia de custódia garante a integridade da prova: se um elo é violado, todo o processo se torna duvidoso. Trago essa analogia para o contexto de saúde. O atendimento ao paciente exige integridade desde a formação do profissional, o registro do prontuário, prescrição, dispensação, até a administração do medicamento. A cadeia de custódia da vida exige barreiras de segurança em todos os elos do cuidado. Trata-se de um compromisso coletivo. Mais que evitar erros, é impedir que falhas isoladas causem danos irreparáveis.
O papel das múltiplas falhas: por que enxergar o sistema?
Na tragédia específica de Benício, constatei vários tipos de falha, que detalho abaixo:
- Comunicação interna deficiente, causando ruídos entre equipe médica, enfermagem e farmácia;
- Ausência de dupla checagem, tanto em protocolos quanto na prática;
- Supervisão ineficaz, sobretudo de residentes e novos profissionais;
- Protocolos inadequados, falhos ou inexistentes;
- Improvisos perigosos motivados por informatização impessoal, sem adaptação para o perfil pediátrico;
- Travas de segurança eletrônica desativadas (vazios do sistema);
- Educação fragilizada, limitando a autonomia e percepção de risco dos profissionais.
Cada vítima desses sistemas supera um limiar. Em cada erro há, por trás, uma sucessão de chances desperdiçadas de interrompê-lo.
Informatização dos sistemas: quando o remédio vira veneno
Tenho visto hospitais apostando em informatizar processos sem personalização real. Quando um sistema ignora particularidades pediátricas ou libera prescrições críticas sem exigência de trava digital ou dupla validação, entrega-se um convite ao erro. Isso força a equipe a atuar “no improviso”, desativando as poucas barreiras ainda existentes.
Erros evitáveis aumentam drasticamente em ambientes informatizados sem crítica clínica. Como mostram dados da Anvisa, 30% das doses administradas em cinco hospitais públicos possuíam alguma falha. Boa parte dessas seriam bloqueadas por sistemas bem parametrizados.

Em minha experiência, informatizar sem personalizar e sem treinar é transferir o risco para a equipe de linha de frente, que passa a resolver manualmente problemas do sistema. Isso “desenha” tragédias desde a origem.
Formação prática tutelada: a diferença entre especialistas e “especialistas de papel”
O debate sobre formação profissional se acentua quando observo o crescimento expressivo de cursos de Medicina sem hospital-escola e da pós-graduação teórica. Segundo pesquisa da Faculdade de Medicina da USP, cerca de 40% dos cursos de especialização médica já são EAD, e muitas instituições não dispõem de estrutura para treinamento prático supervisionado.
Em contraste, a residência médica, ainda limitada no Brasil (estudo da Faculdade de Medicina da USP mostra déficit de vagas), permanece a única via de transformação gerando cultura de supervisão e correção diária. É nela que o recém-formado aprende, sob tutela, a identificar riscos e interromper falhas em tempo real. Sem isso, sobram títulos e faltam competências, os chamados “especialistas de papel”.
Residência não é status: é segurança para o paciente.
Defendo, consistentemente, esse modelo formativo em todos os projetos de gestão e consultoria jurídica que desenvolvo, inclusive nos conteúdos em artigos sobre prevenção de erros médicos.
Precarização da educação em saúde e os riscos ocultos
Observando o ritmo acelerado de abertura de cursos de Medicina (projeções do Ministério da Saúde apontam para mais de 815 mil médicos até 2030), preocupa perceber que muitos serão lançados ao mercado sem residência nem vivência prática real. O foco em provas, certificados e produção de especialistas “no papel”, resultando de faculdades desconectadas de hospitais-escola, é caminho aberto para os improvisos fatais identificados em casos como o de Benício.
Equipe de enfermagem: autonomia, recusa de prescrições e a dupla checagem
Na análise jurídica dos riscos, sempre oriento médicos, técnicos e enfermeiros sobre algo fundamental: segundo o código de ética e regras da ANVISA, tanto técnicos quanto enfermeiros não devem apenas identificar prescrições suspeitas, eles têm autonomia e dever legal de recusá-las. Supervisão, questionamento e dupla checagem são obrigações inegociáveis.
Equipes onde profissionais agem apenas como executores, sem questionar ou validar ordens, rompem o elo da custódia da vida. Isso não é só uma falha de conduta, mas infração ética e legal, como aprofundei em análises de diagnóstico e risco jurídico.
O papel da farmácia hospitalar na cadeia de custódia
Presenciei, ao longo de minha jornada, falhas graves na farmácia hospitalar, principalmente quanto à dispensação de medicamentos de alta vigilância, como a adrenalina. As normas do ISMP (Institute for Safe Medication Practices) e da OMS mandam: toda prescrição incoerente deve ser questionada antes de liberar remédios que podem ser fatais em caso de erro.
Se a farmácia libera drogas perigosas sem conferência clínica, ocorre falha estrutural e negligência real, não apenas um deslize administrativo. Isso reforça que a cadeia protetiva é coletiva, não individual.
O hospital como elo-matriz: onde nasce (ou morre) a segurança
Nenhum protocolo funciona se o hospital, enquanto instituição, não contrata profissionais qualificados, não realiza supervisão ativa, não audita rotinas e não parametriza sistemas eletrônicos de modo seguro. Quando o hospital falha nesses pontos, ele estrategicamente desenha o risco desde a origem.
- Recursos humanos mal selecionados, sem treinamento real, comprometem todo o processo;
- Auditorias superficiais não detectam rotinas perigosas;
- Protocolos de dupla checagem só no papel são inúteis diante de sistemas eletrônicos liberais;
- Ausência de cultura institucional de integridade encoraja o descaso e silencia denúncias internas.
Lembro sempre que a gestão de riscos exige práticas profissionais e normas auditáveis. O hospital que não entende isso está criando o ambiente para a próxima tragédia.
O erro do indivíduo é o sintoma final da doença institucional
O erro ao fim da linha quase nunca é “o erro do indivíduo”. Costuma ser o sintoma visível de uma sequência de violações sistêmicas, em formação, seleção, supervisão, protocolo, comunicação e suporte eletrônico. Uma visão punitiva sobre pessoas isola sintomas e oculta as causas reais, impedindo mudanças efetivas.
Punir o elo final é acalmar a opinião pública, não resolver a doença.
A cadeia de custódia da vida mostra que a raiz do dano quase sempre está longe de quem administrou o último medicamento.
A doutrina da cadeia de custódia da vida: fundamento do novo paradigma
Em meus projetos de consultoria e proteção jurídica, defendo a adoção da doutrina da cadeia de custódia da vida exatamente por deslocar o foco da culpa individual para o serviço defeituoso e para o descumprimento do dever institucional de segurança. Isso coloca o Brasil em sintonia com as melhores práticas internacionais, alinhando-nos à visão da OMS sobre segurança do paciente.
Os benefícios desse paradigma são consistentes:
- Fidelidade científica na análise do nexo causal, rastreando cada elo, não só o último erro;
- Responsabilização racional, imputando culpa onde falhou o sistema, não só na ponta;
- Foco real em prevenção de danos futuros;
- Exigência de gestão hospitalar profissionalizada;
- Redução comprovada de danos graves por meio de barreiras institucionais cada vez mais sólidas.
Esta abordagem já é incentivada em diretrizes do ISMP e na OMS para hospitais que desejam sair do ciclo de tragédias repetidas.
Benefícios práticos: o que muda na rotina e no direito?
Adotar as premissas desse novo paradigma tem impactos reais. Os profissionais ganham segurança, pois deixam de estar indefesos frente a estruturas frágeis. Os gestores passam a responder pela regularidade sistêmica, e, sobretudo, o paciente se torna o centro do processo, protegido por múltiplos elos de segurança.
Diretamente, a cadeia de custódia da vida amplia a transparência na apuração dos nexo causal dos eventos adversos. E, como tenho visto na prática, responsabiliza juridicamente o gestor e a instituição, e não só quem aplicou o último procedimento, promovendo melhorias reais na cultura da saúde.
Sistemas seguros salvam vidas. Estruturas frágeis repetem tragédias.
Da tragédia à transformação: a responsabilidade coletiva
Analisando o caso Benício vejo, com clareza, que a verdadeira mudança reside em reconhecer: sistemas, e não pessoas isoladas, matam. Somente a implementação da doutrina da cadeia de custódia da vida é capaz de transformar tragédias em proteção compartilhada, e evitar que novas famílias sejam destruídas por elos frágeis na saúde.
Esse entendimento precisa ser disseminado entre profissionais, gestores e juristas da saúde. Por isso, em meu trabalho, defendo um compromisso integral com a integridade do cuidado, e convido todos os colegas e leitores a buscar soluções estruturadas, como orientado em orientações sobre o consentimento informado e autonomia do paciente.
Conclusão
Para que o caso Benício marque um novo começo, precisamos enfrentar de frente: são sistemas que matam, não pessoas isoladas. A adoção da cadeia de custódia da vida, com treinamento prático, dupla checagem obrigatória, protocolos auditáveis e cultura institucional de prevenção, é o único caminho para garantir que vidas não dependam do acaso, mas de estruturas sólidas e responsáveis.
Se você deseja transformar sua clínica ou carreira médica em um ambiente mais seguro, transparente e juridicamente protegido, entre em contato. Conheça as soluções completas em gestão e blindagem jurídica para profissionais da saúde desenvolvidas em minha consultoria. Juntos, mudamos a lógica de culpa para a lógica da vida.
Perguntas frequentes sobre cadeia de custódia da vida
O que é cadeia de custódia da vida?
Cadeia de custódia da vida é um conceito que propõe a integridade de todos os processos que envolvem o cuidado ao paciente, desde a formação dos profissionais até a administração dos medicamentos. É inspirado na ideia da cadeia de custódia da prova no direito penal, mas aplicado à saúde, garantindo que cada etapa do cuidado seja rastreável, auditável e protegida, evitando que falhas isoladas resultem em danos irreversíveis.
Como a cadeia de custódia protege o paciente?
Ela cria barreiras institucionais, como dupla checagem, supervisão contínua, validação de prescrições críticas e treinamento prático supervisionado. Cada profissional pode interromper falhas antes que alcancem o paciente, tornando a segurança do paciente responsabilidade de todos os elos do sistema, não só do último executor.
Quais são os principais benefícios desse paradigma?
Entre os benefícios estão: rastreabilidade completa dos processos, responsabilização sistêmica e não punitiva ao indivíduo, prevenção de danos, aumento da qualidade assistencial e fortalecimento da cultura de segurança, além de transparência jurídica e redução de litígios graves.
Como implementar a cadeia de custódia na saúde?
Para implementar, é preciso adotar protocolos de dupla checagem, informatizar sistemas com travas de segurança adaptadas ao contexto clínico, treinar profissionais de forma prática, auditar rotinas regularmente e incentivar cultura profissional que permita a recusa de ordens inseguras em todos os níveis.
Por que a cadeia de custódia é importante?
Ela desloca o foco da culpa individual para a responsabilidade sistêmica e institucional, o que gera ambientes mais seguros, impede repetição de tragédias e alinha o Brasil às melhores práticas de segurança do paciente recomendadas pela OMS e especialistas do setor.